quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Senhor da linguagem e do vento

Antônio Augusto Fagundes/Zero Hora/Agência RBS


Cuerpo presente, alma ausente. Yo quiero aqui los hombres de a caballo, como Lorca diante do corpo inanimado de Ignacio Sanchez Mejía, buscando la salida para este capitán atado por la muerte. Jayme Caetano Braun chegou deitado como dormido em seu esquife de dura madeira campeira. Pilchado, como convém aos que se vão de tropa estrada afora, tinha um lenço maragato atado no pescoço. Ele, o Chimango, que herdara o seu lenço branco do ídolo, o coronel Laurindo Ramos, na Bossoroca. Falei com dona Bréa, a companheira terna, a indiazinha que lhe devolvera o gosto das Missões.– Na hora não achei o lenço branco, nem a boina branca de que ele tanto gostava. Tirei o lenço branco dos Fagundes do meu pescoço e ofereci o velho gonfalão para que acompanhasse o poeta na última tropeada. Com a ajuda dos companheiros, trocamos o lenço colorado (que ele usou, por companheirismo, algumas vezes nos últimos tempos) pelo lenço branco, que sempre foi dele, que lhe deu o apelido carinhoso entre os amigos: Chimango. Mas aí chegou o governador Olívio Dutra, seu amigo e seu conterrâneo dos tempos em que a Bossoroca pertencia a São Luiz Gonzaga, e alguém achou que o poeta podia levar os dois lenços, que ele cantou em Branco e Colorado: “Até Deus Nosso Senhor, que usou bota, espora e mango, lhes garanto que é Chimango – se Maragato não for!”. Jayme Caetano Braun, o mais gauchesco dos nossos poetas, o missioneiro de espinha dura, mestre da payada arrocinada, senhor da linguagem e do vento, o último grande de uma progênie de grandes, partiu. O Rio Grande do Sul ficou menos grande. Os nomes mais famosos do gauchismo, da cultura em geral, estavam lá, hieráticos. A gente tem a impressão de que algum Deus campeiro esculpe em cedro das Missões cada um dos que vão caindo, para compor uma galeria sagrada para o altar do pago. Aqueles homens e mulheres que choravam em silêncio no Salão Negrinho do Pastoreio (o espaço mais nobre do palácio do governo gaúcho homenageia um negrinho humilde, escravo dos nossos campos, que coisa, hein, Chimango?) pareciam ter essa consciência. Eram, mais que admiradores do poeta, devotos de uma crença xucra, meio santa, meio pagã. Davidson Labrea, a meu pedido, comandou um Pai Nosso, ocasião em que todos se deram as mãos. A emoção era tão espessa que podia ser cortada a faca! Ary Fernandes Gonçalves (por quem ele perguntou na última entrevista que me concedeu) declamou Tio Anastácio, e tinha gente que chorava de fazer barro. Declamadores e declamadoras iam deixando sua derradeira homenagem ao poeta querido. Os mestres de truco do Pitoco guardaram uma flor de espadas no caixão do mestre-companheiro que partia. Quando o caixão foi retirado do palácio, para a última viagem, a temperatura baixara perigosamente e um minuano uivava em volta, como um cachorro louco. Fazia frio, de repente, e o céu estava chumbado. Deus Nosso Senhor tinha decretado luto para o Rio Grande inteiro. Na viatura da funerária que transportava o grande morto, havia um decalco dizendo: “Ah, eu sou gaúcho, tchê!”. Na hora, parecia mais um lamento.

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